16.9.07

A vitória de um horror poético e generoso

JAIRO FERREIRA

BRASÍLIA - Durante um festival festivo, como este se realiza aqui, ninguém entrar em todas e sair de todas impunemente. Por isso é necessário concentrar a atenção e o tempo nos pontos luminosos de maior interesse, aqueles que sintetizam as questões mais importantes do cinema brasileiro.

A seleção dos filmes da programação oficial, urdida através da Fundação Cultural de Brasília, não contribuiu para fornecer uma ampla visão da produção atual, já que ficou limitada a meia dúzia de filmes de uma única tendência. E, por outro lado, seria pouco saudável acordar às oito para participar de um simpósio ou um seminário às nove da manhã, inclusive porque a maioria dos convidados não vai para a cama antes da cinco da manhã, no mínimo. Surge daí um clima de horror: a impossibilidade de ver tudo, falar tudo e, menos ainda, ficar por dentro de tudo. A fragmentação é diabólica: veio da cúpula e reflete-se ainda mais fragmentada no programa individual de cada convidado.

Diante desse quadro, quem veio para ver filme só vê filme, quem veio para discutir só discute, quem veio para beber só bebe e assim por diante. O saldo do Festival é composto de estilhaços que nunca se integram, e por isso não há sequer uma pessoa que tenha deixado de dizer a frase chavão: "festival é uma loucura".

Desde o primeiro dia, concentrei meu trabalho de cobertura na mostra "O Horror Nacional", composta de doze filmes semi-interditados, pouco vistos ou recusados na mostra oficial. A intuição me dizia que o horror, com seus vampiros da cultura, terminaria por sugar o sangue cinematográfico de suas vitimas. Deu um revertério desde o momento em que a mostra oficial passou a ser horror e vice-versa, e todo esse processo antropofágico continua a se desenvolver aqui. Só terminará hoje à noite, quando serão revelados os nomes dos vencedores.


"Zé do Caixão e Satã: Os Poderes do Horror na Praça dos Três Poderes"

"Sou contra os festivais competitivos e acho que, além de limitar o número de filmes, marginalizando uns em benefício de outros, termina não cumprindo a sua função que seria primordial: propiciar uma visão total da produção. Por isso acho que os prêmios deveriam ser abolidos e o Festival passaria a ser uma grande feira, cumprindo o papel de basicamente informar", desabafou o cineasta Geraldo Sarno, cujo "Coronel Delmiro Gouveia" participa da mostra oficial.

Alguns cineastas aqui presentes acharam importante ir até á Censura Federal falar com Rogério Nunes, pedindo abrandamento e declarando-se horrorizados. O que nenhum deles lembrou, porém é que esse problema não é novo. Há dez anos atrás, a censura proibia "Ritual dos Sádicos", de José Mojica Marins, filme que completaria a trilogia formada por "À Meia-Noite Levarei sua Alma" (1964) e "À Meia-Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1967). Até hoje o filme tem uma cópia aqui em Brasília, guardada ou perdida nas prateleiras da censura. Então caberia perguntar: se, nem ao menos filmes de dez anos são liberados, quanto mais os que são feitos hoje? Ou seja, estão querendo passar o boi na frente da carroça, pedir abrandamento para os filmes medíocres que são feitos hoje, quando os bons e interditados de ontem continuam na geladeira

A mostra "O Horror Nacional" ganhou total consistência durante este festival porque sintetiza esses problemas. A melhor observação sobre isso saiu ontem no "Correio Braziliense". que estampou na primeira página uma foto de Zé do Caixão e seu fiel companheiro Satã, tendo ao fundo a praça dos Três Poderes, com uma legenda altamente esclarecedora: "Zé do Caixão e Satã: Os Poderes do Horror na Praça dos Três Poderes". Trata-se, evidentemente, da repercussão política deste horror que não é apenas cinematográfico. O diretor José Mojica foi aplaudido antes da exibição de "O Universo de Mojica Marins", de Ivan Cardoso, quando improvisou no palco um discurso de protesto: "Chega de importar filmes estrangeiros de horror. Nós já temos horror demais aqui no Brasil".

O documentário de Ivan Cardoso, porém, não foi muito aplaudido. Houve quem não gostasse. E, da mesma forma, o filme da mostra paralela,"Os Monstros do Babaloo", de Elyseu Visconti, também não foi aplaudido. Causou ate sensação do horror na platéia, por mostrar aberrações e selvagerias que, como observou Mojica, "o espectador às vezes tem dentro de si mas não quer revelar". Isso explica os protestos de alguns espectadores que perturbaram a projeção, achando que o filme é um horror, mas ficando até o fim o se divertindo muito com personagens fora de série: velhas de pernas tortas lutando com debilóides (Helena Ignez), homens horríveis beijando jovens sensuais (Betty Faria), gordas comendo demais (Wilza Carla) e vai por aí afora. Esse filme sofreu cortes em 1971, mas mesmo assim a censura não o liberou. Ao contrário, determinou novos cortes. "Se eu fosse fazer todos os cortes que eles pediram, sobrariam dez minutos de filme", diz o diretor Elyseu Visconti.

Comparado com filmes da mostra oficial, como "A Queda", de Ruy Guerra, o de Elyseu parece incomparavelmente novo, parece que foi feito hoje, enquanto o de Ruy Guerra – que é do ano passado – parece ter sido feito há dez anos, no mínimo, pois já está embolorado, repetindo chavões em nome de um povo e de operários do metro que o diretor não conhece, pois mora ao mesmo tempo em Moçambique e no Leblon. Vamos ver se pelo menos "A Lira do Delírio", de Walter Lima Jr. e "Tudo Bem" de Arnaldo Jabor, escapam desse déficit ideológico, esse abominável bitolamento político que não tem nada a ver com talento e muito menos com cinema. Em conseqüência, quando alguns aqui ousam falar em "ideologia", outros falam em "ideograma".

Aparentemente bem feitos, certinhos e quadrados, os filmes da mostra oficial, alguns identificados plenamente com o chamado cinemão, são na verdade totalmente falsos, impondo ao público um padrão técnico que ninguém pediu, inclusive porque fazer filme bem feito é característica do cinema americano. O cinema nacional só deixa patente sua autenticidade quando foge a esse esquema pré-fabricado para consumo rasteiro, e seu representante neste festival é o horro: filmes de Mojica Marins, Ivan Cardoso, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Elyseu Visconti e Fernando Coni Campos, um horror altamente poético que foi marginalizado mas será redescoberto num futuro que parece já ter começado.

(Folha de S. Paulo, 29 de julho de 1978)


15.9.07

Em Brasília, a maior atração ainda é o horror *

* ou leitura obrigatória após a visão de Horror Palace Hotel. (JT)

JAIRO FERREIRA
Enviado especial

BRASÍLIA – Além de um rigor excessivo e injustificado na seleção dos filmes da programação oficial, reduzidos em quantidade (apenas seis longas e dez curtas metragens) e também em qualidade (essa mosca branca), o 11º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro está introduzindo outra novidade: o fim da "mordomia", ou seja, nem mesmo as pessoas que vieram trabalhar – gente de cinema em geral, jornalistas em particular – estão recebendo credenciais, para não falar em outras comodidades mais caras. O certame, como se sabe, é organizado (leia-se desorganizado) pela Fundação Cultural do Distrito Federal que, sem dúvida, tem o direito de convidar ou não quem bem entender, mesmo que isso seja visto como elitismo, algo multo antipático, pois nasce daí um perigoso sentimento de intolerância, a defesa do Interesse de "minorias selecionadas" contra os interesses gerais do cinema brasileiro que, a essas alturas, deixa de existir ou então passa a existir absurdamente.

Afinal, o que é o cinema brasileiro? Essa confusão que se vê aqui à beira da piscina do Hotel Nacional, com burocratas de terno anotando nomes de atrizes que nunca apareceram em filme algum, diretores respeitáveis de filmes conhecidos passando o vexame de verificar que seus nomes não constam na lista de convidados, cineastas do corpo tentando um dialogo impossível com cineastas da alma? Isso é cinema nacional? Ou é desinformação dos organizadores deste festival, que já foi (há dez anos atrás) o melhor do País?

Explicar o que é o cinema brasileiro a partir de um festival como este seria realmente uma tarefa ingrata, porque aqui estão ao mesmo tempo todas as suas aberrações e também todas as suas virtudes. Aqui está José Mojica Marins, o popular Zé do Caixão, cineasta que inventou um cinema de grossura total, passeando pelos corredores de um hotel que lembra o dos filmes dos Irmãos Marx, encontrando-se à beira da piscina com Walter Hugo Khouri, o cineasta que inventou a finura do cinema brasileiro. Aqui está Ivan Cardoso, cineasta experimental que faz questão de cumprir a sua sina: experimenta tomar banho de piscina, experimenta conversar com os cineastas do chamado "cinemão". E o curioso é que tudo isso está dando certo: até parece que a confraternização existe.

Há dez anos atrás, Rogério Sganzerla ganhou bem este festival com "O Bandido da Luz Vermelha", um filme que torna-se mais antológico a cada ano que passa. Ontem Rogério chegou aqui, mas conversou pouco: não conseguia esconder uma grande mágoa, pois o seu filme "O Abismu" foi recusado para a mostra oficial. Quando lhe perguntam o que achou de ter sido boicotado, ele responde "tudo bem", mas num tom de voz muito humilde que quer significar exatamente "tudo mal". Enfim, ele já fez um manifesto contra a boçalidade e está esperando que a queda do bocal seja provocada pelo próprio. Seu filme "O Abismu", que quero inclusive rever para entender melhor, passará aqui amanhã à meia-noite e deverá provocar as reações já esperadas, uns achando que é genial, outros dizendo que é pra lá de péssimo, pra lá de Bagdá. inclusive porque a ação se passa no continente perdido da Atlântida.

Neville de Almeida é outro cineasta que teve seu filme – "A Dama do Lotação" –recusado neste festival e, claro, não está nada satisfeito, inclusive porque não está gostando da comida que servem aqui mediante a apresentação de alguns "tickets" distribuídos a convidados muito especiais. "Eu acho que meu filmo "A Dama do Lotação" é melhor do que qualquer um deste festival, não foi feito para ganhar dinheiro, como pensam alguns, mas para virar a mesa. Isso eu acho que consegui e não vou dar explicações a uma fauna de eunucos que não gosta do filme. Acho também um absurdo um país que faz cem filmes por ano ter apenas um ou dois festivais (Brasília e Gramado) para exibir pouco mais de dez filmes. Quero sugerir que sejam feitos festivais também no Rio, São Paulo, Manaus etc, única forma de dar oportunidade a todos, sem que um atrapalhe o outro".

Poucas pessoas estão comentando os filmes da mostra oficial exibidos até agora: "Chuvas do Verão", de Carlos Diegues e "O Curumim", de Plácido de Campos Jr., este feito para a televisão como piloto de série. Todos os comentários são para a mostra paralela intitulada "O Horror Nacional", que começou com a exibição de "O Rei do Baralho" e "Agonia", ambos de Júlio Bressane. Porém, em vez de comentar agora esses dois filmes e as reações que provocaram aqui, parece mais oportuno reproduzir um dos raros textos deste (Bressane) que talvez seja o mais talentoso cineasta brasileiro de todos os tempos, escrito aqui mesmo para José Mojica Marins, cujo "A Sina do Aventureiro" (seu primeiro filme, feito em 1956/57) abriu a mostra de horror – embora trate-se de um bangue-bangue – anteontem numa movimentada sessão da meia-noite:

"A Sina" ensina – alguns pontos (luminosos) em preto-branco:

1 – Novo corte na janela da câmera. Lente de cinemascope das cavernas. Recorte novo do espaço (jaula) quadrilátero da tomada: limpeza das margens: algo que antecipa visualmente o cinema moderno à Godard. Cinema muito especial com lente inventada para o próprio filme.

"2 – História da infâmia nacional: filme de interior (dos Brasis) - o mundo do capanga; do caboclo sanguinário; do estupro; do punhal; dos cavalos esqueléticos; do truco; da pinga. O estado larvar do banditismo brasileiro/faroeste com/ em carne viva.

"3 – Nova representação: nova expressão: nova fala: a fala cabocla (da tribo). Música caipira narrando a lenda que é o próprio filme: todos os lugares (IN) comuns do filme de cowboy de cinema poeira. E outros mais! Uma kafkiana foto de mulher atravessa o filme. Retrato-enigma: lapidar escolha de clichê.

"4 – Cinema-descoberta: o cinema compreendido já como montagem (raridade na cinematografia brasileira) e montagem sentida como choque: conflito: ideograma.

"5 – Cinema generoso que sugere ao espectador vários caminhos. E não um único caminho para todo o público! Descubra nesta aventura o seu atalho, a sua sina, sabendo logo que todos eles nos levam lá".

(Folha de S. Paulo, 27 de julho de 1978)

14.9.07

Curtas de Invenção: repercussões (2)

O Dia que o Vampiro Retomou a Cinemateca

Mais um ótimo texto sobre a sessão de curtas do Jairo, escrito pelo Filipe Furtado e publicado na Contracampo:

http://www.contracampo.com.br/88/pgsessaojairo.htm

9.9.07

Curtas de Invenção: repercussões (1)

Antes que eu me esqueça: A verdade e a mentira (e nenhuma das duas) no caótico ataque do vampiro à Cinemateca
por Francis Vogner dos Reis

Belo artigo do Francis, publicado na Cinética. Em http://www.revistacinetica.com.br/festcurtas2007jairo.htm

mostra: JAIRO FERREIRA PARA O SÃO PAULO SHIMBUN

12 a 16 de setembro de 2007

Em sua coluna no jornal São Paulo Shimbun, diário da colônia japonesa de São Paulo, Jairo Ferreira revelou-se um inspirado e atento crítico de exceção e o principal cronista daquilo que ficou conhecido como o Cinema Marginal. Entre 1967 e 1973, escreveu semanalmente para o Shimbun, onde – em plena ditadura miltar –, tinha rara liberdade para escrever sua reflexões sobre o nosso cinema. Em suas críticas não poupava cineastas, críticos – cinefilia – e a política cinematográfica da época: "A confusão é geral. Os debilóides discutem cinema como se estivessem decidindo o futuro do país".


De 12 a 16 de setembro de 2007, a Sala Cinemateca / Petrobras exibe 14 títulos brasileiros, garimpados no acervo da Cinemateca Brasileira, realizados no final dos 60 e comentados por Jairo em sua coluna. Entre os destaques da programação estão A mulher de todos (Rogério Sganzerla), Opinião pública (Arnaldo Jabor), Matou a família e foi ao cinema (Julio Bressane), Corpo ardente (Walter Hugo Khoury) e A herança (Ozualdo Candeias). Na abertura da mostra, após a exibição do longa Orgia ou homem que deu cria e do curta Esta rua tão Augusta, o público poderá conversar com o cineasta João Silvério Trevisan e o pesquisador Alessandro Gamo, organizador da coletânea Críticas de invenção: os anos do São Paulo Shimbun (Imprensa Oficial, 2006).

Esta mostra inicia uma programação regular da Cinemateca Brasileira que homenageará os principais críticos de cinema do Brasil, recuperando fragmentos de seus textos – republicados em nosso folheto de programação – e os filmes por eles comentados.

SALA CINEMATECA / PETROBRAS
Largo Senador Raul Cardoso, 207 – Vila Mariana
próxima ao Metrô Vila Mariana
Outras informações: 3512-6111 (ramal 210) / 3512-6101
www.cinemateca.gov.br

PROGRAMAÇÃO

12/09 – quarta

20h
Orgia ou o homem que deu cria
Esta rua tão Augusta
Com a presença do cineasta João Silvério Trevisan e do pesquisador Alessandro Gamo


13/09 – quinta
19h
O pornógrafo
Uma rua chamada Triumpho 1969/70

14/09 – sexta
19h
Matou a família e foi ao cinema
21h00
Em cada coração um punhal: três histórias que não fundem a cuca de ninguém

15/09 – sábado
16h
O caso dos irmãos Naves
19h30
A mulher de todos
21h30
O corpo ardente
As cariocas (episódio 2)

16/09 – domingo
17h
Opinião pública
19h
A herança
As cariocas (episódio 3)
21h30
Gamal, o delírio do sexo
Bárbaro e nosso

Mais detalhes em:
http://www.cinemateca.gov.br/programacao.php?id=37

7.9.07

O lixo – A Boca faz dez anos

Quem passa pela rua do Triunfo, nas imediações da Estacão da Luz, logo percebe uma estranha mistura de hotelecos, barbearias, botequins de segunda categoria e dezenas de vitrines com cartazes de cinema. No trecho entre a rua Vitória e Gusmões, em especial, concentra-se a qualquer hora do dia uma fauna das mais originais, mas que certamente não se confunde com a fauna noturna que domina a área. "Não é moralismo não, mas a policia nunca me pediu documento aqui no pedaço, porque eu posso ter cara de marginal, mau sou antes de tudo um profissionalde cinema", diz um conhecido técnico que faz ponto no bar Soberano.

Há uns cinco anos atrás, muitos diretores de cinema ainda tinham falsas veleidades e não gostavam de serem chamados de "cineastas da Boca do Lixo". Agora a situação mudou multo, pois até os mais aristocráticos (!) foram obrigados a frequentar o pedaço, que concentra desde produtoras até distribuidoras nacionais e internacionais.

O diretor Ozualdo Candeias, por exemplo, resolveu fazer um livro sobre o pessoal que frequenta a Boca do Lixo: "Não é bem um livro, talvez seja um almanaque, onde os diretores, técnicos e atores falam sobre cinema". Um repórter pergunta: "Candeias, onde é que você pode ser encontrado?" e ele responde: "Bem, quando eu não estou fazendo nada, eu venho aqui pra Boca: agora, quando tenho o que fazer também termino vindo, pois o pessoal está sempre aqui e é daqui que partem as equipes de filmagens e tudo mais". Ele não tem falsa modéstia e, fazendo um livro que terá certamente grande validade, pelo menos como informação, coloca-se na posição de quem não está fazendo nada, "só dando um questionário pra uns e outros ir respondendo".

O pessoal de cinema discute multo entre si sobre a "origem da boca". Os distribuidores dizem que foram os pioneiros, pois já estavam ai desde o início do século, despachando filmes estrangeiros pela Estação da Luz, o que explica a sua proximidade geográfica com a rua do Triunfo. Mas os produtores é que começaram a fazer movimento na Boca e, exatamente há dez anos, Candeias realizava o primeiro filme da Boca, filmando na própria Boca: "A Margem", de 1967, é frequentemente citado como o filme que "abriu a Boca".


A "estrela Boca do Lixo" entre os colegas David Cardoso e Antonio Meliande

- "Olha, o problema é o seguinte: este ano, a Boca comemora dez anos de existência, nós juntamos o pessoal todo e a finalidade é comemorar. Eu não falo em organizar. Eu estou contando com a colaboração de todo mundo pra fazer esse levantamento, mas a Boca é muito mais que isso ou muito menos também, depende do que a pessoa espera dela", diz Candeias, tentando explicar a atual efervescência que se vê no quarteirão.

"Nós começamos por fazer uma festa no fim e início deste ano, conseguindo até interditar a rua do Triunfo. Parece que em fins de ano se costurna fazer essas festas do "amigo secreto". Nós fizemos uin négocio diferente, bolamos urna outra jogada, convidando todo pessoal interessado. E fizemos uma distribuição de prêmios entre nós mesmos, mus também convidando criticos (vieram o Jean Claude Bernardet e o Renato Petri) pra participar ou simplesmente assistir, sei lá", completa Candeias.

Os iluminadores e fotógrafos da Boca resolveram atribuir prêmios – em medalhões com inscrições, feitos sob encomenda – ao melhor assistente de câmara (Miro Reis), melhor chefe eletricista (Souza) e melhor maquinista ('Padre). Os diretores de cinema deram os prêmios "Estrela Boca do Lixo" (Claudete Jaubert) e "Astro Boca do Lixo" (Tony Vieira). Houve ainda o prêmio "Vênus Lixete", o mais curioso deles: a atriz premiada (Denise) preencheu o principal requisito, pois foi a que mais desfilou durante o ano em busca de um papel no cinema, "seja com ou sem fala", proeza que finalmente conseguiu (com fala).

As festas de comemoração dos dez anos da Boca do Lixo deverão continuar durante o ano. Há Inclusive um projeto, já encaminhado à EMURB (Empresa Municipal de Urbanização), destinado a transformar o piso da rua do Triunfo, que deverá ter os nomes de atrizes, atores e diretores inscritos em letras brancas, talvez rodeados de estrelas à maneira de Hollywood

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 14 de janeiro de 1977)

2.9.07

Equilíbrio entre o suspense e o erotismo

Um bom exemplo de que cinema não se faz com boas intenções e muitas "idéias" na cabeça, mas sim com talento: "Excitação" (em cartaz nos cines Marrocos, Augustus e Gazetinha/Centro), o melhor filme de Jean Garrett, um cineasta que já estava acima da média (A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas) e que, a partir de agora, pode ser considerado como o Claude Chabrol do cinema brasileiro. Desde que João Silvério Trevisan "fechou" a Boca do Lixo com o antológico "Orgia" (1971) não se via um filme tão talentoso no cinema local.

A trama é relativamente simples: numa mansão do litoral, uma jovem esposa (Kate Hansen) é perseguida por eletrodomésticos que funcionam sozinhos. O detalhe esclarecedor é que um homem se enforcou nessa casa há tempos atrás. O que é isso? "O Inquilino", de Roman Polanski, antes do próprio "O Inquilino"? Não necessariamente, mas os pontes de contato são inegáveis. O nível de problemas paranormais é patente, o mistério atinge alta densidade dramática e o suspense vai num crescendo do inicio ao fim.



"Nem parece filme nacional", comentou um espectador logo na apresentação, onde há um super-detalhe do olho humano, fixando-se na íris. Os letreiros vão surgindo lentamente numa trucagem muito bem feita e com uma música de grande peso dramático. A narrativa começa a se impor a partir das primeiras imagens, onde os movimentos de câmara são perfeitos e a montagem é exata, lembrando os melhores cortes de Eizo Sugawa e Edouard Molinaro. Pode parecer exagero, mas não é: Jean Garrett é a mais grata revelação do cinema nacional nos últimos anos.

Talento deflagrador, o jovem diretor, nascido em Portugal, tem um apurado senso de narrativa, conseguindo envolver tanto o grande público como os espectadores mais exigentes. Ele preferiu uma trama simples, mas que vai se tornando complexa à medida em que a atmosfera dramática ganha consistência. Trata-se de uma concepção formalista, no bom sentido do termo. A idéia inicial é plenamente desenvolvida pela narrativa, abrindo uma ampla área de sugestões para o espectador.

A paranóia da personagem, perseguida pelos eletrodomésticos, vai aumentando gradualmente no decorrer do filme. Ela tem certa lucidez, no início, mas ficará totalmente louca ao final. Há outro ponto de contato com Eizo Sugawa, o terrível cineasta japonês, que Jean Garrett talvez nem conheça: a policia só entra no filme para levar os cadáveres e os crimes podem não compensar, mas ficam impunes, como em "Morte a Fera", de Sugawa.

A fotografia de Carlos Reichenbach, o Jean Rabier brasileiro, é uma das mais criativas do momento, impondo-se funcionalmente pelo tom mórbido que a trama exigia. A montagem de Walter Wani é uma verdadeira jóia, acentuando o clima com ruídos eficientes, cortes secos e precisos. A música funciona do inicio ao fim. E Kate Hansen tem uma de suas melhores interpretações, longe da petrificação khouriana,. E há outro detalhe importante: pela primeira vez. em muitos anos, o erotismo não surge gratuitamente na tela, mas sim dentro do contexto dramático do litoral, fotografado na penumbra. O único "porém" é o titulo, Excitação, ruim de doer, escondendo o ouro criativo.

Em suma: Excitação é uma surpresa total. Um filme que satisfaz plenamente. Não só pela quase perfeição da imagem, mas também do som. A qualidade da projeção, no cine Marrocos, melhorou assustadoramente. E o som é uma revelação: entende-se absolutamente tudo o que os atores falam. O espectador sai do cinema com a impressão de ter assistido a um dos melhores filmes do ano. Não perca.

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 7 de junho de 1977)