15.9.07

Em Brasília, a maior atração ainda é o horror *

* ou leitura obrigatória após a visão de Horror Palace Hotel. (JT)

JAIRO FERREIRA
Enviado especial

BRASÍLIA – Além de um rigor excessivo e injustificado na seleção dos filmes da programação oficial, reduzidos em quantidade (apenas seis longas e dez curtas metragens) e também em qualidade (essa mosca branca), o 11º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro está introduzindo outra novidade: o fim da "mordomia", ou seja, nem mesmo as pessoas que vieram trabalhar – gente de cinema em geral, jornalistas em particular – estão recebendo credenciais, para não falar em outras comodidades mais caras. O certame, como se sabe, é organizado (leia-se desorganizado) pela Fundação Cultural do Distrito Federal que, sem dúvida, tem o direito de convidar ou não quem bem entender, mesmo que isso seja visto como elitismo, algo multo antipático, pois nasce daí um perigoso sentimento de intolerância, a defesa do Interesse de "minorias selecionadas" contra os interesses gerais do cinema brasileiro que, a essas alturas, deixa de existir ou então passa a existir absurdamente.

Afinal, o que é o cinema brasileiro? Essa confusão que se vê aqui à beira da piscina do Hotel Nacional, com burocratas de terno anotando nomes de atrizes que nunca apareceram em filme algum, diretores respeitáveis de filmes conhecidos passando o vexame de verificar que seus nomes não constam na lista de convidados, cineastas do corpo tentando um dialogo impossível com cineastas da alma? Isso é cinema nacional? Ou é desinformação dos organizadores deste festival, que já foi (há dez anos atrás) o melhor do País?

Explicar o que é o cinema brasileiro a partir de um festival como este seria realmente uma tarefa ingrata, porque aqui estão ao mesmo tempo todas as suas aberrações e também todas as suas virtudes. Aqui está José Mojica Marins, o popular Zé do Caixão, cineasta que inventou um cinema de grossura total, passeando pelos corredores de um hotel que lembra o dos filmes dos Irmãos Marx, encontrando-se à beira da piscina com Walter Hugo Khouri, o cineasta que inventou a finura do cinema brasileiro. Aqui está Ivan Cardoso, cineasta experimental que faz questão de cumprir a sua sina: experimenta tomar banho de piscina, experimenta conversar com os cineastas do chamado "cinemão". E o curioso é que tudo isso está dando certo: até parece que a confraternização existe.

Há dez anos atrás, Rogério Sganzerla ganhou bem este festival com "O Bandido da Luz Vermelha", um filme que torna-se mais antológico a cada ano que passa. Ontem Rogério chegou aqui, mas conversou pouco: não conseguia esconder uma grande mágoa, pois o seu filme "O Abismu" foi recusado para a mostra oficial. Quando lhe perguntam o que achou de ter sido boicotado, ele responde "tudo bem", mas num tom de voz muito humilde que quer significar exatamente "tudo mal". Enfim, ele já fez um manifesto contra a boçalidade e está esperando que a queda do bocal seja provocada pelo próprio. Seu filme "O Abismu", que quero inclusive rever para entender melhor, passará aqui amanhã à meia-noite e deverá provocar as reações já esperadas, uns achando que é genial, outros dizendo que é pra lá de péssimo, pra lá de Bagdá. inclusive porque a ação se passa no continente perdido da Atlântida.

Neville de Almeida é outro cineasta que teve seu filme – "A Dama do Lotação" –recusado neste festival e, claro, não está nada satisfeito, inclusive porque não está gostando da comida que servem aqui mediante a apresentação de alguns "tickets" distribuídos a convidados muito especiais. "Eu acho que meu filmo "A Dama do Lotação" é melhor do que qualquer um deste festival, não foi feito para ganhar dinheiro, como pensam alguns, mas para virar a mesa. Isso eu acho que consegui e não vou dar explicações a uma fauna de eunucos que não gosta do filme. Acho também um absurdo um país que faz cem filmes por ano ter apenas um ou dois festivais (Brasília e Gramado) para exibir pouco mais de dez filmes. Quero sugerir que sejam feitos festivais também no Rio, São Paulo, Manaus etc, única forma de dar oportunidade a todos, sem que um atrapalhe o outro".

Poucas pessoas estão comentando os filmes da mostra oficial exibidos até agora: "Chuvas do Verão", de Carlos Diegues e "O Curumim", de Plácido de Campos Jr., este feito para a televisão como piloto de série. Todos os comentários são para a mostra paralela intitulada "O Horror Nacional", que começou com a exibição de "O Rei do Baralho" e "Agonia", ambos de Júlio Bressane. Porém, em vez de comentar agora esses dois filmes e as reações que provocaram aqui, parece mais oportuno reproduzir um dos raros textos deste (Bressane) que talvez seja o mais talentoso cineasta brasileiro de todos os tempos, escrito aqui mesmo para José Mojica Marins, cujo "A Sina do Aventureiro" (seu primeiro filme, feito em 1956/57) abriu a mostra de horror – embora trate-se de um bangue-bangue – anteontem numa movimentada sessão da meia-noite:

"A Sina" ensina – alguns pontos (luminosos) em preto-branco:

1 – Novo corte na janela da câmera. Lente de cinemascope das cavernas. Recorte novo do espaço (jaula) quadrilátero da tomada: limpeza das margens: algo que antecipa visualmente o cinema moderno à Godard. Cinema muito especial com lente inventada para o próprio filme.

"2 – História da infâmia nacional: filme de interior (dos Brasis) - o mundo do capanga; do caboclo sanguinário; do estupro; do punhal; dos cavalos esqueléticos; do truco; da pinga. O estado larvar do banditismo brasileiro/faroeste com/ em carne viva.

"3 – Nova representação: nova expressão: nova fala: a fala cabocla (da tribo). Música caipira narrando a lenda que é o próprio filme: todos os lugares (IN) comuns do filme de cowboy de cinema poeira. E outros mais! Uma kafkiana foto de mulher atravessa o filme. Retrato-enigma: lapidar escolha de clichê.

"4 – Cinema-descoberta: o cinema compreendido já como montagem (raridade na cinematografia brasileira) e montagem sentida como choque: conflito: ideograma.

"5 – Cinema generoso que sugere ao espectador vários caminhos. E não um único caminho para todo o público! Descubra nesta aventura o seu atalho, a sua sina, sabendo logo que todos eles nos levam lá".

(Folha de S. Paulo, 27 de julho de 1978)