22.10.07

Nacionais a Meio Carvão

O cinema nacional continua morrendo na contramão sem atrapalhar o tráfego. Tinha dez pessoas vendo Os Deuses e os Mortos numa sessão de dia de semana. Melhor se fechar para balanço. Não se trata de descrença: Cordélia, p. ex., é uma demonstração de alto padrão técnico-artístico. As Noites de Iemanjá é uma porcaria (Capô que me perdoe, estou cansado de saber que cineasta também tem fome, fico com o Profeta e acho que o lance é mudar de profissão). Pantanal de Sangue é uma droga, Reinaldo Barros aliás nunca foi de nada. De tudo isso é preferível Uma Verdadeira História de Amor (ex-Cio) de Fauze Mansur, que está conseguindo atrapalhar o sábado (bateu e continua a bater recordes de bilheteria no Cine Ouro). – JF

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(Metacrítica da Criticalha – II). A morte da linguagem, que hoje em resumo interdita toda abertura como marginal ou patológica, toda divergência como aberrante – e em outro nível impõe uma sinonímia generalizada ao consumo popular de modo a reduzir uma série de significantes a um sentido único, é bem o que explica a sem cerimônia com que agora o cinema é visitado por essa crítica curiosa que O Estado achou melhor já suprimir de vez.

Estamos no domínio da redundância perfeita: o saber mediano intervém com sua compreensão possível (o cinema como hibridismo de entretenimento e “cultura”) para reforçar o que a grande indústria e os veículos tecnológicos lhe empurram como cinema. Fechado esse círculo onde todos nos entendemos (quer dizer, o Estadão e seu público), o cinema reconfortantemente volta a encontrar sua verdade instrumental (veículo de histórias, nunca de narrativas). Ou seja, veículo de uma forma narrativa essencial, contendo todas as ficções possíveis: ora, essa narrativa que a indústria cinematográfica ainda cultiva freneticamente tem, no entanto, seus referenciais básicos assentados e distinguíveis em uma linha narrativa: o romance burguês século XIX. O que permite a um imbecil que não se assina afirmar que em Lúcia McCartney as “cenas são mal concatenadas”, sem ao menos se dar ao trabalho de explicar diante de que paradigma de “concatenação” aquela se mostraá “má”. Ou mais adiante: “o milionário paulista poderia ser mineiro, carioca ou gaúcho”, reivindicando em síntese uma caracterização (psicológica) como obrigatória do “bom filme”, do que poderia não ser mais do que uma denominação. Sem imaginar que em outra situação mental (talvez a do autor do filme) “milionário paulista” não tenha de ser uma composição portadora, mas produtora de sentido.

Se tudo isso denota uma ausência absoluta de rigor, resta notar que por ironia não falta “rigor” ou vigor a essa crítica curiosa. Pronta a se segurar nos detalhes e retalhes do filme com uma obstinada intransigência, uma má consciência logo desvendada por trás dessa onipotência do senso comum: que não podendo fazer da crítica senão um instrumento de juízo e submissão às formas dadas (de cinema como de vida) tenha de alargar ao máximo os limites das severidades. Porque mesmo a precária restauração que se verifica na atualidade de um pensamento onde “prudência”, “honestidade”, “bom sendo” tinham seu lugar, já não consegue ocultar a repetição que no cinema, como fora dele, se mostra o desgaste do mundo.

Ignácio Araújo

(São Paulo Shimbun, 9 de dezembro de 1971)