29.1.08

Cineasta fica nu para a platéia horrorizada

JAIRO FERREIRA
Enviado especial

Salvador – Durante a mostra "O Horror Nacional", ocorrida no recente festival de Brasília, o eminente homem de cultura universal e de cinema brasileiro em particular, Francisco Luis de Almeida Salles, afirmou que "é preciso horrificar as pessoas para que elas readquiram a visão, pois sem horror não há visão". Essa frase lapidar cai como uma luva nesta 7ª Jornada Brasileira do Curta-Metragem que se realiza aqui em Salvador. A única diferença é a cor local: parafraseando Almeida Salles, posso dizer que è preciso haver um desnudamento cultural, pois só assim as pessoas poderão readquirir a visão e ver com olhos livres, como propunha o poeta Oswald de Andrade.

Explicando melhor: o nível dos filmes apresentados na Jornada está tão baixo que, pior. è impossível. Uma situação que. evidentemente, reflete-se nos debates que estão tão insossos, "dirigidos" e repetitivos que chegam a saturar. Inesperadamente, porém, um acontecimento da maior importância sacudiu a poeira da polêmica provinciana, embora ainda não tenha dado a volta por cima: durante um dos debates mais repressivos, o jovem cineasta Edgar Navarro tomou o microfone e disse o seguinte: "Quem tem o microfone tem o poder. Agora eu vou enrolar vocês todos com o fio deste microfone, vou tirar toda a minha roupa e espero que vocês abandonem esta sala, porque eu quero ficar nu e só aqui. Vocês falam muito em realidade social, mas esquecem que antes é preciso se descobrir a si mesmo".

Tudo isso pode parecer exagero, mas não é: aconteceu aqui em Salvador, aliás, o único lugar do Brasil onde essas coisas poderiam acontecer. Parece que o calor escaldante que faz nesta cidade provoca alterações físicas e mentais nas pessoas. Como foi que isso aconteceu? Qual era a situação anterior que levou o cineasta Navarro a tomar essa atitude tão radical? Bem. na verdade, a maioria das pessoas está encarando isso como folclore. Por ora é oportuna a opinião do diretor da Jornada do Curta-Metragem, Guido Araújo:

"A Jornada tem uma tradição de liberdade muito grande, conquistada com muito trabalho e esforço durante os últimos sete anos. Meu único temor é que atitudes como a de Edgar Navarro possam comprometer essa mesma liberdade, porque muitas pessoas podem interpretar de forma equivocada e negativa aquele gesto. Sempre lutei para que houvesse muita alegria neste encontro, mas o cineasta foi longe demais. Minha esperança é que ele justifique a sua atitude, fazendo dela algo mais conseqüente".

No dia em que foi exibido o filme "Exposed", de Edagard Navarro, o chamado astral baiano estava muito carregado. Os cineastas foram chamados à mesa pelo coordenador dos debates, o crítico José Carlos Avelar e, um por um, foram dizendo o que já tinham feito em cinema antes do filme exibido no dia. No momento em que Navarro pegou o microfone, recusou-se a dar prosseguimento aquela chatíssima explicação de "curriculum vitae" e recitou em francês um rápido poema de Marcel Proust, lembrando seus tempos de escola. Até aí, tudo bem. Acontece que, logo depois houve uma intervenção, ou melhor uma provocação de Bernardo Vorobov, programador do Museu da Imagem e do Som de São Paulo: "Eu acho que, dos 15 filmes apresentados hoje, somente três devem ser debatidos aqui". Foi o suficiente para que Navarro abandonasse a mesa, dizendo que tinha recebido um sinal. Foi sentar-se no meio da platéia, humildemente, pois seu filme "Exposed", um dos mais aplaudidos na Jornada até aquele dia, não tinha sido citado entre os três escolhidos por Vorobov, uma situação em parte assumida pelo coordenador dos debates. Dai para o "strip tease", foi só uma questão de tempo. No dia seguinte, porém, Navarro pegou o microfone (depois de muita batalha) e fez uma respeitável autocrítica:

"Eu estava muito triste porque meu filme não podia ficar excluído da discussão. Com a minha atitude não tive intenção de agredir ninguém, porque me considero um pacifista. Perdi a minha mãe aos nove anos. Tive que ler muito Freud para me manter vivo, para conseguir chegar até aqui. Agressão é o que houve naquele debate em direção a mim e não da minha parte".

A atitude do cineasta, certamente, esta muito coerente com o seu filme "Exposed", palavra que vem impressa no fim dos cartuchos de filme Super 8 e que significa "exposto". O que Navarro fez não foi outra coisa: ele expôs o filme e completou o ciclo, expondo-se a si mesmo física e mentalmente ao público. Comentário do cineasta Rogério Duarte:

"A partir desse filme, eu começo a respeitar o Edgar como um grande cineasta. O filme è sobre ele mesmo e tem momentos de cinema superior: a cena em que aquele fogo queima na tela. com a música cantada por Caetano, "Coração Materno", é de arrepiar".

Por enquanto, estou cobrindo e descobrindo a Jornada do Curta-Metragem no que ela possa ter de cinema, compreendido como invenção e criação, pois é isso o que falta ao atual cinema nacional. Essa não e apenas uma opinião pessoal minha: o consenso da grande maioria dos cineastas aqui presentes também acha que não adianta nada ter uma lei e um mercado de curta-metragem nas mãos e nenhuma idéia na cabeça. Esta é portanto uma Jornada que nem Freud explica. Tudo termina amanhã, quando será exibido "25" (Vinte e Cinco) de Ze Celso Martinez, que chegou anteontem aqui. Estão presentes também Cosme Alves Neto, da cinemateca do Museu de Arte dpRio de Janeiro, os críticos Jean-Claude Bernardet e Alberto Silva, cineastas como João Batista de Andrade e Thomas Farkaz, além do ministros das comunicações Euclides Quandt de Oliveira, que deverá chegar para uma mesa redonda. Resta esperar que eles expliquem o que nem Freud explica.



22.1.08

Biáfora: tentações de um raro cineasta


"A Casa das Tentações", escapando milagrosamente à mediocridade geral do cinema que se faz atualmente em São Paulo, começa a ser exibido a partir de hoje nos cines Copan, Regina, Augustus, Gazeta, Palmela e San Remo. Trata-se do terceiro longa-metragem de Rubem Biáfora, um cineasta brasileiro que só faz cinema de dez em dez anos: em 1957, realizou "Ravina" e, em 1967, "O Quarto".

– O mínimo que eu posso dizer é que não estou me repetindo. Quando fiz "Ravina", minha preocupação era desenvolver um certo tipo de romantismo, que terminou sendo uma experiência gótica. Já em "O Quarto", procurei o verismo e muita gente começou a dizer que eu tinha aderido ao neo-realismo. Mas não era bem isso: no fundo mesmo, o que interessa é que os filmes tenham consistência humana. E é isso que eu tento fazer novamente agora, mas partindo para uma comédia que tem base dramática.

Utilizando uma narrativa anti-linear, isto é, sem o tradicional começo, meio e fim, o novo filme de Biáfora ambienta-se "nas altas e também nas pequenas esferas sociais", procurando devastar os bastidores e desmascarar o comportamento hipócrita da maioria das pessoas.

– Meu filme gira em torno da corrupção, da mediocridade e também da ingenuidade dos chauvinistas subdesenvolvidos. Todos estão procurando um lugar ao sol, correndo atrás do dinheiro. O personagem de Pedro Stepanenko, por exemplo, tem um diálogo bem esclarecedor: "Vamos explorar o ponto fraco dessa gente decadente", diz ele. Basicamente o filme é a história de dois vigaristas que exploram a profissão mais antiga do mundo, mas devidamente encobertos por uma fachada. A minha defesa foi jogar um sarcasmo em cima deles, atingindo os tradicionalistas decadentes e os incompetentes de forma geral.

O cineasta define seu filme como "uma farândola", realizando um tipo de cinema que não pode ser classificado como pornochanchada, Cinema Novo ou Cinema Marginal O que será então?

– Como gênero, fiz uma mistura de drama e comédia, apresentando recursos ora oníricos, ora realistas e, muitas vezes, com alusões bíblicas. Confesso que a intenção inicial era só dramática, mas depois, trabalhando o comportamento dos personagens, fui acrescentando o sarcasmo em cima de quase todos. Para surpresa de muita gente, um dos personagens que eu mais respeito no filme é o do "hippie", interpretado pelo Flávio Portho, que tem uma preocupação mística e se destaca dos demais.

Em seu livro "Revisão Critica do Cinema Brasileiro", Glauber Rocha fez duras criticas à "Ravina", realizado em co-direção por Rubem Biáfora e o falecido Flávio Tambellini: "Ravina é a coroa mortuária de uma mentalidade pequeno-burguesa que persegue um ideal aristocrático. Pasticho mal feito de dramalhões argentinos, por sua vez influenciados por antigos dramalbões americanos de William Wyler, notadamente "Jezebel" e "O Morro dos Ventos Uivantes", "Ravina" é um exemplo de como não se deve fazer cinema em qualquer parte do mundo". Mas o próprio Glauber Rocha se retrataria mais tarde, enviando uma carta a Rubem Biáfora, por ocasião do lançamento de "O Quarto", em 1968, onde confessou que "esse filme é um depoimento comovente e humano".

Com uma carreira cinematográfica que tem 30 anos, embora seus três filmes longos não lhe tenham ocupado mais do que seis anos, Rubem Biáfora é também uma das maiores autoridades de cinema no Brasi. Faz arquivo de filmes desde 1928, guardando tudo sobre os lançamentos do cinema estrangeiro e nacional. Sem maiores esforços de memória, consegue lembrar os principais dados dos filmes exibidos no Brasil principalmente até 1950. Dai para cá, ele prefere consultar os índices. Mas seu novo filme não tem quase nada a ver com essa erudição. Ao menos é o que ele garante:

– Em "A Casa das Tentações", só identifico uma influência muito leve de um filme de Vincent Sherman, com Ida Lupino e alguma coisa de "Cul de Sac" ("Armadilha do Destino"), de Roman Polanski, no que diz respeito ao absurdo e à perversidade. E lógico que tem ainda a influência absorvida dos musicais da Metro, particularmente de "O Pirata", de Vincent Minnelli. O que fica no inconsciente é uma coisa e outra é fazer citações propositais, coisa que eu evitei, pois não teria cabimento fazer isso quando estou procurando fazer um trabalho pessoal. Considero satisfatório o resultado plástico do filme, a procura da intensidade dramática na cor. Como se sabe, poucos se preocupam com a cor entro nós e eu acho que isso é uma necessidade, mas não teria sido possível se o fotógrafo Cláudio Portioli não tivesse entendido as minhas intenções, tanto que ele foi ao mesmo tempo fotógrafo, iluminador e assistente de direção.

Com um elenco dos mais diversificados do cinema nacional, o filme deu uma boa oportunidade ao diretor para trabalhar com tipos humanos. Os atores principais são Flávio Portho, Elizabeth Gásper, Pedro Stepanenko, Cavagnole Netto, Francisco Curcio, Áurea Campos, entre outros, mas a vasta galeria é completada por participações de elementos dos mais variados setores do cinema nacional: Rubens Ewald Filho, crítico de cinema; Fauzi Mansur, Carlos Reichenbach, Heron D’Avila, Edward Freund, Anselmo Duarte, todos diretores de cinema. Outras figuras de destaque que também estão no filme: Bernardo Vorobow, Paula Ramos, Miro Reis, Wilson Louzada, Betina Viany, Liana Duval, Leina Krespi, Marlene França, Selma Egrei, Paulo Hesse, Pedro Paulo Hatheyer, Sérgio Hingst, Arasary de Oliveira, a bailarina Marilena Ansaldi e Silvio Reinoldi, o próprio montador do filme.

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 29 de agosto de 1977)


20.1.08

Khourioso, cafônico, paleolítico

O cinema paulista continua desenvolvendo, ainda, a pior dramaturgia do País, transformando atores de carne e osso em estátuas caricatas na linhagem remanescente da velha e paleolítica Vera Cruz, esse fantasma que ressurge até mesmo nas pornochanchadas. "A Noite das Fêmeas" (em cartaz nos cines Olido e República) traz esse mofo dramático de uma forma talvez inconsciente, já que o diretor Fauze Mansur julga estar dando "um salto adiante". Ledo engano, diria aquele locutor de voz cavernosa, outra figura típica dessa tendência tétrica.

O filme é khouriano (ou melhor, "khourioso") a partir dos letreiros de apresentação: duas máscaras que lembram civilizações antigas e sombrios toques de um piano "cafônico", diluição do estilo "dodecafônico" que Rogério Duprat produzia para o Walter Hugo Khouri de dez anos atrás. "A vida imita a arte"? Mas desde quando Oscar Wilde é lido na Boca do Lixo? "Assim é se lhe parece"? Uma coisa é certa: se Fauze Mansur conhecesse a última frase, que é de Pirandello (1867-1936), antes que esta crítica fosse publicada, teria mandado o seu trucador colocá-la às pressas nesse filme pretensioso, ma irremediavelmente retrógrado, mas não atonal. Talvez, nesse caso, sobrasse a frase, já que sem ela sobra muito pouco.



Marlene: imitando o pior da vida

O erro de Fauze Mansur neste filme é o erro do "Movimento Boca do Lixo" de uma forma geral. São cineastas semi-analfabetos que querem se "intelectualizar". Fauze fez bons filmes ( "Sinal Vermelho", "A Noite do Desejo", "Sedução"), mas agora quis dar um salto maior do que a perna. Ele não sabia que era preciso muita cultura semiológica e metalinguística para mexer com realidade/ilusão, ator/personagem e outros babados. A culpa é também de Marcos Rey, o argumentista, responsável por algumas das piores coisas que tem surgido ultimamente. O resultado é esse: Jean Garret não se assume como um bárbaro sem cultura e entra bem com "Possuídas pelo Desejo"; Fauze Mansur não se assume como um classe média de linha árabe e quer chegar a ser um Khouri, mas usando um câmera que treme mais do que terremoto (Cláudio Portioli é bom apenas como fotógrafo e iluminador). Assim não dá!

Para demonstrar como o diretor não se assume: o título original é "Ensaio Geral", conforme se vê nos letreiros. Já não bastava encher os cartazes de gratuitas mulheres nuas? Não. Fauze Mansur ainda arrumou um título apelativo: "A Noite das Fêmeas". E isso tudo poderia ser esquecido se o filme tivesse fluência narrativa e humor, duas coisas fundamentais que ele não tem. A narrativa é pesada e consegue dar um blefe no espectador, pois oculta apenas um grande vazio.

O que adiantou esse grande elenco "all star"? O melhor é Carlos Bucka, que se salva por mérito pessoal, ajudado por seu porte físico de jovem Orson Welles. Os demais, como Marlene França são vítimas do clima de tensão que passou dos bastidores para a tela e ficou estampado em fisionomias contraídas: a arte imitou a vida no que ela tinha de pior. E o que parece que não havia na vida (leia-se ambiente de filmagem) é o que falta em quase tudo que se faz nesta Capital: humor. Há quem pense que humor é necessário só em comédias. Outro ledo engano. Se o filme pretendia ser um drama leve, resultou num dramalhão pesado.

Com todos os erros, "A Noite das Fêmeas" está fazendo grande sucesso de bilheteria: rendeu 27 mil cruzeiros no primeiro dia de exibição no cine Olido, contra 32 mil de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" no cine Ipiranga. O ruim imitou o pior.

Jairo Ferreira


(Folha de S. Paulo, 27 de novembro de 1976)

16.1.08

O jazz criminal do pistoleiro Calmon

JAIRO FERREIRA

Em Hollywood, ainda um paraíso dos artesões de cinema, o fato é rotina: um diretor faz contrato com determinado estúdio por alguns anos ou por um série de filmes, indo, depois, para outro estúdio, sempre realizando trabalhos de encomenda. No Brasil, sequer há estúdios (há galpões improvisados): o diretor artesão pode trocar, quando muito de produtor. Isso está acontecendo com Antonio Calmon, diretor de "Eu Matei Lúcio Flávio" (a partir de hoje nos cines Ipiranga, Metrópole, Art Palácio São Paulo, Rio Branco e circuito): após uma profícua associação com o produtor Pedro Carlos Rovai, ele experimenta o estúdio Magnus Filme, de Jece Valadão. Segundo referências, trata-se de novo salto qualitativo na carreira de Calmon, pistoleiro de aluguel que faz filmes como quem toca jazz:

– "Eu Matei Lúcio Flávio" é meu sétimo longa-metragem e também meu trabalho mais completo e realizado. Nesse filme eu apenas não tive melhores condições de trabalho como também creio ter chegado a um amadurecimento como diretor. É nele que concretizo a proposta que desenvolvi em meus três últimos filmes ("Gente Fina é Outra Coisa", "O Bom marido" e "Nos Embalos de Ipanema"), ou seja, a de um cinema basicamente preocupado com o grande público e com a criação de uma dramaturgia popular, sem os cacoetes de estilo geralmente associados aos filmes de preocupação social, produzidos no País. O primeiro dado dessa proposta é o rompimento com a leitura política inaugurada pelo Cinema Novo nos anos 60 e com a ideologia a ela subjacente.

Eu critico o que se convencionou chamar de cinema político pela sua ineficácia em chegar ao grande público, embora teoricamente esses filmes tratem de seus problemas. É um cinema feito por intelectuais, estudantes universitários e demais representantes de uma elite cultural ilhada num país onde a maioria da população é analfabeta – ou semi-analfabeta.




– O subdesenvolvimento provoca em nós uma necessidade de autojustificação por nossa incômoda situação de minoria privilegiada num país onde a miséria cresce assustadoramente. Estou farto da discussão interna e culposa, das regras do bom-tom artístico, assim como da boa consciência política. Acho que é função do artista brasileiro contemporâneo transformar-se numa espécie de antena receptora das manifestações de mudança acelerada em processo no Brasil com todas suas contradições. E numa segunda etapa, o artista deve transformar-se numa antena difusora que participe da criação de uma cultura de massas para brasileiros. Ou seja, estou preocupado com o novo e não com a cultura bacharelesca, mesmo que de oposição. Não adianta tentar combater a avalanche de filmes estrangeiros e nossa própria produção baixamente comercial com filmes ascéticos, cheios de dignidade mas incompreensíveis para a massa.

Cabe lembrar que Calmon teve uma formação eclética: foi assistente de Arnaldo Jabor ("Pin-orama") e Glauber Rocha ("O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro"), mas também de Júlio Bressane ("Cara a Cara") e Gustavo Dahl ("O Bravo Guerreiro"). Ele é um dos poucos que assimilou o melhor do Cinema Novo e o melhor do Experimental que se opôs ao Cinema Novo, quando este começou a ficar velho. Filho de ambos movimentos, muito distintos, por sinal, Calmon já começou a ser ele mesmo há algum tempo – talvez seja o caso de se falar numa terceira posição, mas é melhor não criar rótulos.

Esse "novo produto cultural para a década de 80", pelo visto, começa a ser feito pelos mesmos cineastas dos anos 70: Glauber Rocha terminará "A Idade da Terra"?; Rogério Sganzerla começou seu filme sobre Noel Rosa e prepara "Toda a Mentira"; Júlio Bressane está concluindo "O Gigante da América"; Neville de Almeida conclui "Os Sete Gatinhos". Mas é Calmon quem dispara na vanguarda da retaguarda artesanal, porque é o que tem mais auto-crítica e demonstra que soube aprender com os erros de seus colegas de geração.

– Em "Eu Matei Lúcio Flávio", começo a desenvolver um novo momento na busca de um cinema popular e contemporâneo. Trabalhar com e para Jece Valadão é muito mais do que um relacionamento de um diretor com o ator produtor. A meu ver, o Valadão é um dos raros arquétipos de comportamento nacional com quem a população se identifica de maneira completa. Talvez disso decorra a imagem negativa que dele circula entre as elites: cafajeste, violento, machão, grosso e portanto, de direita. Acho que o comportamento do personagem Jece Valadão é recusado pela intelectualidade por não constar dos manuais importados que guiam nosso pensamento político. E nem poderia já que ele ó um brasileiro autêntico e não o Cllnt Kastwood que os escravos de Hollywood cultuam nem o Gian Maria Volonté com quem nossa esquerda se delicia. Mas um herói ou anti-herói nacional. Prefiro assumi-lo em sua complexidade a etiquetá-lo com rótulos e preconceitos. Acho que o carinho e a admiração que o povo tem por figuras como o Jece ou o Roberto Carlos transcendem os rígidos padrões ideológicos que os condenam.

– Mas para mim o desafio maior foi fazer um filme baseado na pessoa do ex-policial Mariel Mariscott, essa figura notória da crônica policial carioca. Ele já estava indiretamente retratado em "O Passageiro da Agonia", de Hector Babenco, um de nossos raríssimos filmes em que a qualidade não prejudicou a comunicação com o público e onde se dava o confronto do bandido Lúcio Flávio, quase transfigurado num guerrilheiro urbano, e a figura do policiai Moretti, representante da repressão e da corrupção. Meu filme é deliberadamente mais ficcional, embora procure demonstrar que a violência criminal e a violência policial são duas faces da mesma moeda.

– Mariel Mariscott, ex-salva-vidas, ex-leão de chácara, ex-agente da policia judiciária, ex-guarda-costas de dois ministros da República, ex-homem de ouro da polícia carioca – está preso e é acusado de vários crimes do Esquadrão da Morte. Esse esquadrão surgiu logo após a criação, pelo então secretário da segurança carioca, de uma equipe para o combate ao crime organizado no Estado da Guanabara. Diga-se de passagem que isto aconteceu no auge da repressão policial do período Médici.

– A prisão de Mariel Mariscott não significou o fim das violências e arbitrariedades da polícia civil e militar; pelo contrario, hoje está mais claro do que nunca que a polícia existe para a manutenção de um "apartheid" menos ostensivo que o da África do Sul, mas igualmente odioso. Assim como o cinema, o teatro e a literatura que alienam do seu consumo a maioria da população. Não vejo diferença entre policiais torturadores e os criminosos que nos assaltam e assassinam. Mas como cidadão responsável não posso deixar de ver em nós mesmos, representantes da "intelligentsia" nacional, uma considerável parcela por toda essa violência. O povo é a nossa musa, mas não faz parte do nosso cotidiano.


(Folha de S. Paulo, 8 de outubro de 1979)

13.1.08

Zé Mojica na busca de uma manchete

JAIRO FERREIRA

"Respeitada seja a visão de quem quer ver; mesmo que essa visão provenha das projeções mentais de um cego". Com essa epígrafe visionária, digna do melhor Jorge Luiz Borges, do melhor Jerônimo Bosch e do melhor William Blake, para citar apenas três gênios poéticos de diferentes épocas e nacionalidades, tem início "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo", extraordinário filme de José Mojica Marins que estréia hoje nos cines Premier e Avenida.

Comparar Mojica Marins aos gênios citados pode parecer ousadia exagerada, mas não é. O cineasta paulista não pode ser entendido e nem discutido a partir de referências meramente cinematográficas, porque o cinema brasileiro está vivendo um momento medíocre, um vôo rasante na cultura, enquanto Marins se destaca como artista único, o primeiro dos cineastas obrigatórios desse deserto fílmico. O único detalhe é este: a necessidade de separar o joio do trigo, de não confundir "Delírios de um Anormal" com "À Meia Noite Encarnarei no teu Cadáver" ou "Perversão" com "À Meia Noite Levarei sua Alma". Em outras palavras: Marins é capaz do pior e do melhor e "Manchete de Jornal" é o que ele fez de diferente depois de alguns anos de repetições e desacertos. Fala o gênio:

– "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo" é um filme que fiz num fim de ano, com produção dos meu técnicos habituais, dedicado a eles, uma boa forma de dar um prêmio a eles. Náo vou ganhar um tostão com esse filme porque as porcentagens são todas da equipe, principalmente Satã, o homem que tem sido visto como meu guarda-costas, que me acompanha em tudo o que faço. Foi ele que me socorreu no fim do ano passado, quando o caixão que também me acompanha nos últimos 16 anos caiu sobre mim, no fim de uma macabra festa de aniversário (onde o homenageado era justamente o caixão), o que me valeu uma boa fratura da clavícula. Eu estava formando uma dupla com Satã, semelhante ao Mandrake e ao Lothar, e não poderia deixar de ir à Espanha mostrar meus filmes. Se consegui chegar lá, munido de sete atestados médicos, foi com a colaboração de Satã.




Marins, Satã e Antonio Ráfales: menção especial na Espanha

– O que eu mostro nesse "Manchete de Jornal" é a trajetória de um jornalista que sai de casa de manhã, buscando uma manchete. Mas é preciso saber ver: o que eu entendo por jornalismo não é o que outros entendem. Já me perguntaram porque esse jornalista, que eu mesmo interpreto no filme, tem as unhas compridas. Respondo que ele está fazendo uma promessa: não cortará as unhas enquanto não conseguir a manchete, se conseguir. A manchete que ele busca não é uma noticia comum, sensacionalista, dessas que se lê nos jornais diariamente. Esse jornalista busca algo que os outros jornalistas não buscam e que é a informação que ninguém deu. Ele não é um repórter acomodado e por isso sofre, fica decepcionado com a realidade. O roteiro é fruto de minhas leituras do Apocalipse bíblico, mas interpretado segundo a minha visão.

Como já assisti ao filme, posso confirmar que Mojica Marins está na pista certa da informação nova. O que o jornalista de seu filme busca não é nada mais do que a informação de primeiro grau, essa mosca branca dos anos 70. Com efeito e como é feito: isso é o mais importante do filme. Contando com um mínimo de recursos de produção, o cineasta consegue o máximo de concentração. Há no filme, inclusive, uma sequência de implosão da informação: o jornalista visualiza o Apocalipse da comunicação, com mil imagens que são projetadas a partir de sua mente. Dai a sua consonância com "O Aleph" que, curiosamente, o cineasta não leu, porque seus livros habituais não são os de Jorge Luis Borges, mas simplesmente historias em quadrinhos.

– Eu tinha esse roteiro guardado há muitos anos e não encontrava uma oportunidade pra realizar o filme. Muitos cineastas queriam me comprar o roteiro, mas não abri mão. Eu sabia que esse filme poderia significar um renascimento da minha carreira e as pessoas que viram o filme disseram exatamente isso: que é o melhor que já fiz desde os primeiros, principalmente os dois de horror, "À Meia Noite Levarei sua Alma" e "À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver". Eu quis mostrar que existo também sem o Zé do caixão, mas o jornalista desse filme é uma projeção desse personagem. Eu disse na Espanha que uma coisa é Mojica Marins e outra é o Zé do Caixão. O sofrimento do jornalista é o meu sofrimento. Zé do Caixão busca o filho perfeito, que só pode ser feito com a mulher perfeita. O jornalista busca a manchete também perfeita.

O repórter que eu interpreto no filme tem um prazo de 24 horas para conseguir a manchete redentora de ano novo. Toda a ação do filme se passa em um dia. Um dia que vale por todos os dias porque, nessa véspera de ano, o repórter vê o mundo interior, vê a história da humanidade e vê todas as desumanidades possíveis. Essa é a realidade dele. Não fui eu que inventei o horror: o horror existe no cotidiano. Meu filme apenas reflete um pouco desse horror. O que eu inventei é o filme. Tive garra pra fazer esse filme, inventando sempre o que ainda não foi inventado, porque aquele que inventa o que já existe deixa de ser inventor.

– Sei que "Manchete de Jornal" é um filme que vai mexer com a classe dos jornalistas, mas acho que vai agradar aos bons jornalistas, aos que se dedicam de corpo e alma ao seu trabalho e que fazem de sua profissão não apenas um ganha pão. Não tive a intenção de fazer nenhuma critica aos maus jornalistas, inclusive porque estou sempre dizendo que a visão que eu tenho do jornalismo é particular, minha. Eu vejo o jornalismo da forma que está no filme. Se essa forma não corresponde à realidade, se não é bem assim, isso não me interessa. Eu acho que sou autêntico porque tenho coragem de filmar o que penso.

Mojica Marins não pode ter realmente nada contra o jornalismo brasileiro porque nenhum outro cineasta foi tão promovido como ele. Em seus estúdios da Mooca, tive oportunidade de ver o arquivo do cineasta e fiquei impressionado: todos os jornais brasileiros lá dedicaram páginas e mais paginas a ele. No estrangeiro, depois de Glauber Rocha, Mojica Marins é o cineasta mais comentado. Revistas francesas dedicaram várias páginas ao homem, que parece ser insaciável: Mojica Marins reclama que a maioria dos jornalistas que o entrevistam terminam a conversa no ponto em que deveria começar. Insatisfeito com essa situação, está escrevendo atualmente vários livros, tendo um deles já pronto ("O Universo de Mojica Marins", mesmo título do documentário que sobre ele fez Ivan Cardoso). Seu sistema de trabalho é este: nunca pára de filmar e, quando chega em casa à noite, liga um gravador e vai até altas horas da madrugada, expondo ao microfone a sua revolta constante contra o mundo, contra as injustiças que ele diz ver durante o dia. Como não pode fazer uso da máquina de escrever, devido ao comprimento de suas unhas (que variam entre 5 e 10 centímetros), deixa a tarefa de compilação a cargo de seu filho, um garotão que curte música de discoteca.

Em suma: "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo" é o filme mais revelador desse universo fantástico de José Mojica Marins, não apenas um cineasta-inventor, mas basicamente um poeta visionário, um grande pensador, o criador da metafísica do povão. Tudo o que ele pensa sobre jornalismo, informação e comunicação está nesse filme, obra absolutamente deflagradora, visceral e generosa. Trata-se se de um filme único e legítimo porque não é imitação e, certamente, não terá imitadores.


(Folha de S. Paulo, 4 de junho de 1979)

10.1.08

Brincando com um revólver de verdade

JAIRO FERREIRA

Sempre ouvi dizer maravilhas de Marco Ferreri, mas nunca pude constatar pessoalmente. Ele já fez mais de 30 filmes e, desses, nem 10 chegaram ao Brasil. Não sou entusiasta de seu filme mais famoso, "A Comilança", e só começo a descobrir o cineasta depois de ter assistido "Dillinger está Morto".

O título vem de uma manchete de Jornal antigo, encontrado por acaso por um cidadão (Michel Picolli) de bom nível social, sobre o qual pouco se fica sabendo durante o filme todo. Há um dialogo inicial entre ele e sua mulher e, em seguida, o homem começa a "não fazer nada'': anda de cá pra lá dentro de seu apartamento, liga a TV, ouve rádio, começa a preparar um jantar. Essa brincadeira, sem diálogos, é sustentada por uma narrativa apoiada exclusivamente na imagem. A câmera o acompanha inquietamente, mas quem tem que perscrutá-lo é o espectador, se é que conseguirá.

Estamos diante de um filme experimental, claro. Pensei logo em "Matou a Família e foi ao Cinema" (1969), de Júlio Bressane, também tirado de uma manchete de jornal. Ferreri não mata a família: mata a mulher e não vai ao cinema (já tinha feito uma sessão de cinema para ele mesmo), senão ao Taiti!


Se há 5 minutos de diálogo no filme é muito. Poderia ser mudo que nãofaria grande diferença. Curiosamente, a banda musical é composta de rotineiros programas de sucessos radiofônicos e, quando surge uma música extra, é brasileira. Há 3 ou 4 canções brasileiras durante o filme todo, sem créditos e não identificadas: a letra fala em "solidão" e "vou caminhando pelas ruas". Não sei se Bressane viu na Europa esse filme de Ferreri antes de filmar.

O que Ferreri quis dizer com esse filme?, perguntavam alguns espectadores após a projeção. Foi ai que pensei comigo: Ferreri não quis dizer nada, quis filmar e filmou muito bem. "Dizer" é palavra e o filme quase não a usa. A imagem, de resto, não "fala", expressa e tenho comigo que não importa o que Ferreri expressa, mas como expressa.

Trata-se de um filme sobre a mitologia do cinema. O "gangster" Dillinger aflora através de "flashes-backs" subjetivos. Tudo parece difícil, mas é fácil: com aquela carga de violência na memória, o personagem de Ferreri só poderá fazer bom uso do revólver que estava embrulhado no jornal em que leu a manchete que dá título ao filme. Piccoli brinca o tempo lodo com seu revólver de verdade, embora enferrujado. Bom cozinheiro desde então ("A Comilança" repete seu papel aqui em outra dimensão), pega o azeite caseiro e vai jogando nele as pecas da arma. Azeitar a arma durante 30 minutos é coisa de cineasta experimental: na verdade ele esta fazendo um guisado de revolver, azeitando as palas, desparafusando peça por peça. Como se isso não bastasse, tem o requinte de pintar o revólver com tinta vermelha e bolinhas brancas.




Depois de brincar com as imagens de mulheres que aparecem num filme que ele mesmo projeta para si, o personagem toma uma atitude já há muito (in)esperada: joga dois travesseiros em cima da mulher que dorme e dispara várias vezes. Como se nada fosse real, sai de manhã, pega o carro e vai dar um mergulho. Nisso está passando um navio, onde o cozinheiro morreu e é atirado ao fundo do mar, após breve "descanse em paz". Piccoli sobe no navio e candidata-se a ser o novo cozinheiro, após encontro com bela jovem de biquíni. Sua atitude final é perguntar: "Para onde vamos?". "Para o Taiti", respondeu o capitão. Na trilha sonora, volta a música brasileira: "caminhando pelas ruas", quando estamos em pleno oceano!

Não há conclusões a tirar, claro. O filme todo é aberto a múltiplas interpretações, pois o niilismo de Ferreri é total. Dá a impressão que, naquela viagem ao Taiti, ele poderá liquidar também a moça de biquíni. Mas o que acontecerá não importa, porque este é um filme em que o que acontece não tem importância nenhuma, se é que acontece alguma coisa. Cinema pode ser isso também: sonho que ninguém sonhou.

(Folha de S. Paulo, 28 de fevereiro de 1980)

9.1.08

I'm sorry, Brasil

JAIRO FERREIRA

O espectador que assiste a um filme como “Bye Bye Brasil” não sabe que o lançamento é acompanhado de um precioso folheto, só distribuído à imprensa. Nesse folheto não está somente toda a informação necessária à promoção do filme, mas também textos críticos que condicionam a todos. Assim, nem seria preciso fazer a crítica do filme, pois quem discordar das coordenadas do folheto correrá o risco de todas as pichações. É esse risco que quero assumir e começo por analisar a grande frase de Carlos Diegues sobre seu filme:

“ ‘Bye Bye Brasil’ é um filme sobre um país que começa a acabar, para dar lugar a um outro que acaba de começar”. Belo trocadilho. Passaria por “dialético”, se eu não conhecesse todos os textos de Jean-Luc Godard. Que Brasil é esse que começa a acabar? O dos últimos 15 anos, esse tremendo cliché?

O filme se passa no Nordeste, Norte e Centro do Brasil. Mas o Brasil todo não cabe em três regiões: o Brasil está em São Paulo, onde há nordestinos, nortistas, centristas, sulistas. O Brasil todo só coube num único filme, “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), de Rogério Sganzerla. porque a ação é passada em São Paulo, com todas as regiões sintetizadas na maior concentração industrial ou não do Pais. Mas “Bye Bye” também não é um filme sobre o que começa a acabar naquelas regiões. Se entendi bem, o que começa a acabar é o pessimismo e o que acaba de começar é o otimismo. Carlos Diegues será o Frank Capra brasileiro?

Todos gostariam de ter esperança no Brasil dos anos 80, mas como isso pode acontecer se, para citar um exemplo cinematográfico, os operários de um filme de Candeias tomam leite em cofrinho da poupança (quando tomam)? Diegues força a barra dessa esperança: seus personagens se arrumam na vida. Se adaptam ao sistema. “Bye Bye” me parece um filme institucional.

Cinematograficamente, o que começa a acabar é uma mentalidade do Cinema Novo, no momento em que acaba de começar o experimental. Toma-se cada vez mais difícil explicar Isso pois o Cinema Novo começou a acabar em 67 e o experimental nasceu ai Diegues não quis acabar junto com o Cinema Novo ("tenho vontade de vomitar quando falam em Cinema Novo" declarou há muitos anos). Mas entre 67 e 79 não houve discussão, debate ou critica livre: estamos começando a discutir agora, em 80. o que não foi discutido nos últimos 13 anos. Então é preciso ir devagar com o andor não quero superestimar nem subestimar “Bye Bye Brasil”. Quero apenas dizer “I’m sorry. Brasil”.

Em “Chuvas de Verão”, filme anterior de Diegues, a ação se passa em terreno emocional, areia movediça em que as coisas se tornam mais refratárias. Seria bom se, após “Bye Bye Brasil”, o cineasta desse um novo tempo para voltar com a carga toda e fazer, finalmente, um grande filme. Pois está difícil engolir a índia de “Bye Bye”, ouvindo radinho de pilha (já vi isso em “Os Pastores da Desordem”, filme grego de Nikos Papatakis, feito em 67, onde um pastor de ovelhas não descola a orelha de um rádio portátil).

Não estou sendo irônico nem maldoso: estou sendo crítico. O filme de Diegues exibe uma má consciência do Brasil. Não sei se pior ou melhor do que aquela de Arnaldo Jabor em “Tudo Bem” (1978). tentando colocar o Brasil todo dentro de um apartamento! Turismo pretensioso é tão nocivo quanto sínteses parciais e equivocas que se tomam por abrangentes. De resto, não engulo a frase final de “Bye Bye”: “Ao povo brasileiro do século 21”.

Falar em “povo brasileiro” é uma temeridade: o próprio Diegues promoveu uma sessão desse filme em São Bernardo, “para operários”, mas no debate um representante dos metalúrgicos levantou-se para dizer que lamentava a ausência de operários na sala. Ato continuo, levantou-se um metalúrgico e disse. “Mas eu sou operário”. De fato, era: antes um que nenhum. Quer dizer, o cinema poderá um dia atingir a massa, mas hoje só atinge a uma elite (a arte é elitista por natureza, pois é coisa de especialista).

(Folha de São Paulo, 22 de fevereiro de 1980)