16.1.08

O jazz criminal do pistoleiro Calmon

JAIRO FERREIRA

Em Hollywood, ainda um paraíso dos artesões de cinema, o fato é rotina: um diretor faz contrato com determinado estúdio por alguns anos ou por um série de filmes, indo, depois, para outro estúdio, sempre realizando trabalhos de encomenda. No Brasil, sequer há estúdios (há galpões improvisados): o diretor artesão pode trocar, quando muito de produtor. Isso está acontecendo com Antonio Calmon, diretor de "Eu Matei Lúcio Flávio" (a partir de hoje nos cines Ipiranga, Metrópole, Art Palácio São Paulo, Rio Branco e circuito): após uma profícua associação com o produtor Pedro Carlos Rovai, ele experimenta o estúdio Magnus Filme, de Jece Valadão. Segundo referências, trata-se de novo salto qualitativo na carreira de Calmon, pistoleiro de aluguel que faz filmes como quem toca jazz:

– "Eu Matei Lúcio Flávio" é meu sétimo longa-metragem e também meu trabalho mais completo e realizado. Nesse filme eu apenas não tive melhores condições de trabalho como também creio ter chegado a um amadurecimento como diretor. É nele que concretizo a proposta que desenvolvi em meus três últimos filmes ("Gente Fina é Outra Coisa", "O Bom marido" e "Nos Embalos de Ipanema"), ou seja, a de um cinema basicamente preocupado com o grande público e com a criação de uma dramaturgia popular, sem os cacoetes de estilo geralmente associados aos filmes de preocupação social, produzidos no País. O primeiro dado dessa proposta é o rompimento com a leitura política inaugurada pelo Cinema Novo nos anos 60 e com a ideologia a ela subjacente.

Eu critico o que se convencionou chamar de cinema político pela sua ineficácia em chegar ao grande público, embora teoricamente esses filmes tratem de seus problemas. É um cinema feito por intelectuais, estudantes universitários e demais representantes de uma elite cultural ilhada num país onde a maioria da população é analfabeta – ou semi-analfabeta.




– O subdesenvolvimento provoca em nós uma necessidade de autojustificação por nossa incômoda situação de minoria privilegiada num país onde a miséria cresce assustadoramente. Estou farto da discussão interna e culposa, das regras do bom-tom artístico, assim como da boa consciência política. Acho que é função do artista brasileiro contemporâneo transformar-se numa espécie de antena receptora das manifestações de mudança acelerada em processo no Brasil com todas suas contradições. E numa segunda etapa, o artista deve transformar-se numa antena difusora que participe da criação de uma cultura de massas para brasileiros. Ou seja, estou preocupado com o novo e não com a cultura bacharelesca, mesmo que de oposição. Não adianta tentar combater a avalanche de filmes estrangeiros e nossa própria produção baixamente comercial com filmes ascéticos, cheios de dignidade mas incompreensíveis para a massa.

Cabe lembrar que Calmon teve uma formação eclética: foi assistente de Arnaldo Jabor ("Pin-orama") e Glauber Rocha ("O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro"), mas também de Júlio Bressane ("Cara a Cara") e Gustavo Dahl ("O Bravo Guerreiro"). Ele é um dos poucos que assimilou o melhor do Cinema Novo e o melhor do Experimental que se opôs ao Cinema Novo, quando este começou a ficar velho. Filho de ambos movimentos, muito distintos, por sinal, Calmon já começou a ser ele mesmo há algum tempo – talvez seja o caso de se falar numa terceira posição, mas é melhor não criar rótulos.

Esse "novo produto cultural para a década de 80", pelo visto, começa a ser feito pelos mesmos cineastas dos anos 70: Glauber Rocha terminará "A Idade da Terra"?; Rogério Sganzerla começou seu filme sobre Noel Rosa e prepara "Toda a Mentira"; Júlio Bressane está concluindo "O Gigante da América"; Neville de Almeida conclui "Os Sete Gatinhos". Mas é Calmon quem dispara na vanguarda da retaguarda artesanal, porque é o que tem mais auto-crítica e demonstra que soube aprender com os erros de seus colegas de geração.

– Em "Eu Matei Lúcio Flávio", começo a desenvolver um novo momento na busca de um cinema popular e contemporâneo. Trabalhar com e para Jece Valadão é muito mais do que um relacionamento de um diretor com o ator produtor. A meu ver, o Valadão é um dos raros arquétipos de comportamento nacional com quem a população se identifica de maneira completa. Talvez disso decorra a imagem negativa que dele circula entre as elites: cafajeste, violento, machão, grosso e portanto, de direita. Acho que o comportamento do personagem Jece Valadão é recusado pela intelectualidade por não constar dos manuais importados que guiam nosso pensamento político. E nem poderia já que ele ó um brasileiro autêntico e não o Cllnt Kastwood que os escravos de Hollywood cultuam nem o Gian Maria Volonté com quem nossa esquerda se delicia. Mas um herói ou anti-herói nacional. Prefiro assumi-lo em sua complexidade a etiquetá-lo com rótulos e preconceitos. Acho que o carinho e a admiração que o povo tem por figuras como o Jece ou o Roberto Carlos transcendem os rígidos padrões ideológicos que os condenam.

– Mas para mim o desafio maior foi fazer um filme baseado na pessoa do ex-policial Mariel Mariscott, essa figura notória da crônica policial carioca. Ele já estava indiretamente retratado em "O Passageiro da Agonia", de Hector Babenco, um de nossos raríssimos filmes em que a qualidade não prejudicou a comunicação com o público e onde se dava o confronto do bandido Lúcio Flávio, quase transfigurado num guerrilheiro urbano, e a figura do policiai Moretti, representante da repressão e da corrupção. Meu filme é deliberadamente mais ficcional, embora procure demonstrar que a violência criminal e a violência policial são duas faces da mesma moeda.

– Mariel Mariscott, ex-salva-vidas, ex-leão de chácara, ex-agente da policia judiciária, ex-guarda-costas de dois ministros da República, ex-homem de ouro da polícia carioca – está preso e é acusado de vários crimes do Esquadrão da Morte. Esse esquadrão surgiu logo após a criação, pelo então secretário da segurança carioca, de uma equipe para o combate ao crime organizado no Estado da Guanabara. Diga-se de passagem que isto aconteceu no auge da repressão policial do período Médici.

– A prisão de Mariel Mariscott não significou o fim das violências e arbitrariedades da polícia civil e militar; pelo contrario, hoje está mais claro do que nunca que a polícia existe para a manutenção de um "apartheid" menos ostensivo que o da África do Sul, mas igualmente odioso. Assim como o cinema, o teatro e a literatura que alienam do seu consumo a maioria da população. Não vejo diferença entre policiais torturadores e os criminosos que nos assaltam e assassinam. Mas como cidadão responsável não posso deixar de ver em nós mesmos, representantes da "intelligentsia" nacional, uma considerável parcela por toda essa violência. O povo é a nossa musa, mas não faz parte do nosso cotidiano.


(Folha de S. Paulo, 8 de outubro de 1979)